“Humanos modificam as paisagens, seja para melhorar a diversidade de plantas, seja para degradá-la”, diz pesquisador
Em entrevista à Agência Fapeam, Charles Clement ressaltou a importância da domesticação das plantas para compreensão do processo de socialização na Amazônia brasileira e de que forma a Fapeam tem contribuído para a formação de recursos humanos na região
Residente no Brasil desde 1976, o cientista norte-americano e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) com aporte financeiro do governo do Estado via Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), Charles Roland Clement, tem coordenado estudos sobre fragmentos florestais na Amazônia.
Em seu mais recente estudo com apoio do governo do Estado via Fapeam, o pesquisador pretende analisar a domesticação de plantas no Alto Rio Madeira e sua importância para a formação social na região. Em entrevista à Agência Fapeam, Charles Clement ressaltou a importância da domesticação das plantas para compreensão do processo de socialização na Amazônia brasileira e de que forma a Fapeam tem contribuído para a formação de recursos humanos altamente qualificados na região.
Confira a entrevista:
Agência Fapeam: Seu mais recente projeto com a Fapeam, no âmbito da parceria da Fundação com o Fundo Newton, visa estudar a origem da domesticação de plantas no Alto Rio Madeira. De que forma o senhor vem conduzindo este estudo?
Charles Clement: Alguns anos antes da Fapeam fazer parceria com o Fundo Newton, nosso grupo fez uma revisão da literatura sobre as origens de domesticação dos cultivos nativos da Amazônia para um projeto com o CNPq (Conselho Nacional de Desenolvimento Científico e Tecnológico). Foi observado, então, que os cultivos mais velhos e mais importantes originaram na periferia da bacia amazônica e não no centro. Entre essas periferias está a bacia do alto rio Madeira, que deu origem a mandioca, ao tabaco, a coca, a pimenta picante (Capsicum bacatum, que é mais importante no sul do Brasil do que na Amazônia), a pupunha e, ainda sendo confirmado, ao urucum.
Conseguimos realizar o primeiro workshop do Alto Rio Madeira, em outubro de 2015, com nossos parceiros da University of Exeter, na Inglaterra, e da Universidade de São Paulo, em Piracicaba. Pesquisadores e pós-graduandos dos três grupos envolvidos, fazem as partes mais difíceis e agradáveis da pesquisa, como por exemplo, o levantamentos florísticos, a coleta de plantas, a extração de DNA e a análise de sua variação. Durante o workshop revisamos o estado da arte sobre o Alto Madeira e planejamos as atividades do projeto.
AF: Com relação aos cultivos escolhidos pelo homem amazônico para serem domesticados, quais deles tiveram preferência? Esses cultivos domesticados são importantes para o desenvolvimento do homem amazônida e da região?
Charles Clement: Diferentes grupos humanos, em diferentes partes da bacia amazônica, têm diferentes conjuntos de espécies a sua disposição nas suas paisagens locais. Quando os primeiros humanos chegaram à Amazônia entre 22 e 15 mil anos atrás, identificaram plantas úteis, tanto para alimentos quanto plantas medicinais. Quando identificaram plantas individuais com características melhores para atender suas preferências, acreditamos que estas plantas foram manejadas na paisagem, resultando em populações mais abundantes e com qualidades melhores. Chamamos este processo de domesticação da paisagem. Quando essas pessoas, que acreditamos geralmente serem mulheres, identificaram alguma planta especialmente atrativa, elas poderiam trazer amostras ao acampamento onde podiam cultivar na periferia do acampamento, geralmente na lixeira – este é o início do processo de domesticação de populações de plantas, que hoje chamamos de melhoramento genético.
Algumas características importantes nesta discussão: gostamos de experimentar novidades e gostamos de trocar presentes. Daí vem a constatação que plantas que foram especialmente úteis e respondiam bem à domesticação foram logo presenteadas para outros grupos. Se um presente recebido era melhor que a mesma espécie local, o presente passaria a ter preferência e o tipo local seria abandonado. Estas características das mulheres resultaram em muitas domesticações e na dispersão de muitas destas para toda a bacia amazônica e para o resto da América tropical de baixa altitude. A mandioca, por exemplo, provavelmente começou a ser domesticada no lugar onde hoje é o Estado de Rondônia, ao redor de 10 mil anos atrás e já há 6,5 mil anos atrás chegou a México. Ao mesmo tempo, o milho mexicano chegou à Amazônia.
A lista de cultivos que mencionei como sendo domesticada no Alto Rio Madeira inclui o cultivo alimentício mais importante da Amazônia: a mandioca e suas variedades bravas e mansas (macaxeira). Este cultivo ainda é a base da alimentação amazônida e também alimenta pelo menos outros 800 milhões de pessoas no mundo tropical.
Certamente vai ser mais importante ainda num mundo mais quente e menos previsível, porque aguenta muitos maus tratos e ainda produz. Outro é o urucum, um importante corante, que chamamos de colorau quando usado na culinária local, mas muito utilizado na indústria alimentícia em geral e na indústria cosmética. Embora provavelmente originária de Rondônia e adjacências (resultados preliminares do grupo da USP), a pupunha tem a maior produção no Nordeste e Sudeste do Brasil. Na Amazônia Ocidental, é provável que fosse tão importante na pré-história como o milho e a mandioca, servindo como fonte de energia e para fermentação alcoólica. Na bacia amazônica, outros cultivos de expressão nacional e internacional também foram domesticados, como cacau no extremo oeste da bacia, abacaxi no nordeste, batata doce no noroeste. Todos são mais importantes em outras partes do país ou do mundo.
AF: O relacionamento homem e meio ambiente na Amazônia e na região do Rio Madeira ocorreu de que forma?
Charles Clement: A ecologia histórica é uma abordagem que parte do pressuposto que humanos modificam suas paisagens continuamente, que foi o que chamamos de domesticação da paisagem. Quando a população é pouco numerosa, faz pouca modificação, seja para melhorar a paisagem com maior abundância e diversidade de plantas úteis, seja para degradar a paisagem, como pode acontecer em assentamentos. Conforme aumenta o número de pessoas, aumentam as modificações, tanto positivas como negativas. Acreditamos que houve uma predominância de modificações positivas, que podemos ver, hoje, nos cultivos domesticados, nas florestas domesticadas (pense em castanhais, açaizais, piquiazais etc.), e nos solos domesticados (terra preta de índio e terra mulata, que são sítios arqueológicos (TPI) e suas adjacências (TM)).
Acreditamos em uma predominância de modificações positivas porque as florestas voltaram vigorosamente nas paisagens domesticadas após a dizimação dos povos indígenas ao longo da colônia portuguesa. Quando o Brasil assumiu o controle da colônia amazônica os primeiros naturalistas europeus, como Alexandre Rodrigues Ferreira e Karl von Martius, reportavam florestas maduras vazias, demonstrando que as paisagens tiveram uma resiliência notável – que não esperaríamos de outras domesticações da paisagem moderna, como os campos de soja em Mato Grosso ou pastos em Pará.

“A bacia do Alto Rio Madeira tem um clima mais sazonal do que Manaus e muito mais sazonal do que Tabatinga, por exemplo”, disse Charles Clement.
AF: O clima da região também teve influência sobre a adaptação dessas espécies?
Charles Clement: Sim. A bacia do Alto Rio Madeira tem um clima mais sazonal do que Manaus e muito mais sazonal do que Tabatinga, por exemplo. Uma espécie nativa da transição do Cerrado para a floresta ao longo do sul da Amazônia, como a mandioca, teve que sofrer novas adaptações quando os humanos levaram o cultivo do sudoeste para o noroeste da Amazônia. E espécies adaptadas às regiões quase não sazonais do extremo oeste da Amazônia, como o cacau ou o cubiu, tiveram que sofrer novas adaptações quando os humanos os levaram para outras partes da Amazônia e, no caso de cacau, até México. Estudar os nichos ecológicos originais dos cultivos nativos ajuda a identificar seus centros de origem de domesticação, como um de nossos doutorandos, Leonardo Sampaio, bolsista da Fapeam, está fazendo com biriba.
AF: As informações genéticas e arqueológicas colhidas em sua pesquisa serão armazenadas no Herbário do Inpa. Conte um pouco sobre os estudos que serão realizados a partir do material coletado.
Charles Clement: O herbário do Inpa é atualmente curado pelo Dr. Michael Hopkins, participante de nosso projeto Fapeam-Fundo Newton. Além de depositar amostras botânicas que permitem garantir os nomes das espécies de que tiramos DNA, o Dr. Hopkins e o Dr. Iriarte, de Exeter, irão criar a primeira coleção arqueológica dentro do herbário. Geralmente, pensamos em cerâmica e artefatos líticos quando pensamos em coleções arqueológicas, como no Museu da Amazônia da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), mas esta nova coleção será de arqueobotânica e incluirá, inicialmente, uma amostra de fitólitos das plantas úteis e das ervas daninhas de paisagens domesticadas.
AF: De que forma o apoio da Fapeam tem contribuído para o desenvolvimento das suas pesquisas?
Charles Clement: A Fapeam tem sido uma parceira importante desde sua criação, tanto para apoiar os projetos de pesquisa mencionados, como para oferecer bolsas de pós-graduação aos alunos envolvidos nestes projetos e em projetos apoiados por CNPq e outras agências, além de permitir a alguns pós-graduandos participar de congressos nacionais. Quem faz o trabalho difícil e agradável, hoje, são os alunos de pós-graduação e muitos dos artigos importantes publicados por nosso grupo incluem bolsistas da Fapeam como primeiro autor (artigos baseados em teses e dissertações) ou como coautor (já que muitos alunos colaboram um com outro para alcançar seus resultados). Fazendo uma contagem rápida, desde sua criação a Fapeam apoiou 40% dos projetos de pesquisa do nosso grupo e pelo menos 30% dos bolsistas têm apoio da Fapeam, consequentemente, com presença em pelo menos 30% dos artigos em que os bolsistas são autores e coautores. É muita coisa e esperamos que essa parceria continue.
Ada Lima / Agência Fapeam
Foto destaque: Michael Dantas / A Crítica
Gostei muito do texto. Me interesso bastante pelo assunto, semelhante ao trabalho desenvolvido pelo grupo de etnobotânica da UFSC.
Curso Ciências Biológicas na UFSC e pretendo em algum momento conhecer e desenvolver pesquisa na região amazônica, que ainda não conheço pessoalmente.